Wednesday, September 27, 2006

Caldeira

Estava no sítio do costume. Sentado naquela mesa de madeira, gasta pelos ínfimos encontrões de zangas diversas, conseguia ver a totalidade daquele lugar, que, ao contrário de muitos outros, cheirava a poncha de laranja apanhada há dias e não a vício de nicotina constante que mata as suas vítimas lentamente. Hoje uma tosse, amanhã uma curta dor no peito, até que um dia passamos para um lugar como este. Um lugar onde não somos lembrados. Cada cara é nublada, embora nitidamente visível a quem, por uns breves instantes, olhe com olhos ingénuos e não egocêntricos. Ao meu lado estava sentado um homem baixo, barrigudo, careca e com uns fundos óculos graduados. Ele olhava para o nada, como alguém que tenta a todo o custo esconder do mundo alheio a porta da sua alma. Sempre considerei que os nossos olhos contam todos os nossos segredos. Evito o contacto com os olhos de outrem porque os meus enigmas são tão difíceis de recalcar que qualquer um vê a minha transparência. Os olhos dele, não obstante a sua idade avançada, eram jovens e com esperança. Havia tristeza descontraída e resignação evidente. Sentei no meu canto a beber uma cerveja regional. Odeio cerveja, aliás, odeio álcool em geral, não pelo gosto a nada que deixa na minha boca, mas sim pelo gosto de sofrer. Olhando para aquele corpo vulnerável, comecei a questionar como é que eu seria quando envelhecesse. Como é que eu seria quando a única coisa que me restasse era esborrachar-me na minha fiel cadeira de há anos e pensar em tudo que fiz ao longo da minha vida. Será que vou gostar do que fui? Será que vou arrepender-me de algo que fiz ou será que o verdadeiro tormento irá ser lembrar-me de tudo que não disse? Será que essas pessoas irão saber o quão importantes eram para mim? Sentado nesta cadeira oca, como eu, recordo-me do que sou. Olá, sou o Filipe, quero ser Realizador de Cinema e quero ajudar a desenvolver o meu país. Sonhos temos muitos ao longo da vida, mas são raros os que se concretizam. O homem, desorientado, levanta-se, enfim, da cadeira húmida e dirige-se para a porta com um espanta-espíritos a sobrevoá-la. A mínima brisa liberta um som gélido e metálico, digno do estado mórbido que é este momento. O frio lá fora torna cada alma uma fonte de calor ambulante. Juntos parecem uma grande caldeira de vapor que inspira-me e não deixa a minha chama apagar-se. São cinco da manhã. Empregados cansados e desgastados recolhem loiça suja de alimento corporal enquanto contam centavos ferrugentos deixados como gorjeta. Está na hora de ir embora. Ao olhar para o mundo que me espera, sinto relutância em sair daqui. Pego no meu casaco e no meu cachecol e dirijo-me para a rua. Estava a meio caminho quando sinto uma mão quente no meu ombro. Ao virar-me reconheço de imediato aquela figura mística e tão pouco admirada. Agarro a sua mão e ele guia-me para uma porta com a palavra PARTICULAR escrita em letras prateadas. Das bordas saía uma luz que quase me cegava. Sabia o que esperava-me. Havia chegado o meu dia. Pela primeira vez vou ter paz. Apaga-se a luz. Estou no vazio. Tranca-se a porta atrás de mim. Esta é a minha nova etapa. Bem vindo à morte.

1 comment:

Sunshine said...

Será que é assim a morte? Será que acaba assim, um filme das nossas vidas... uma avaliação final? Como um sonho que está preste a acabar?
Acordar de novo? Sonhar sem fim? De facto levantas perguntas interresantes...
Será que irei gostar de quem fui... será que as pessoas vão saber quanto foram importantes para mim.
Faz com que a alma sinta o peso da responsabilidade... do hoje.
De facto é um dos teus melhores textos... qualquer alma sentia o frio mesmo ao ler o texto no dia de calor.

Love Always,
Sunshine